E era um escritor que não sabia escrever

O conto que você lê abaixo foi escrito por mim em 2014, para um concurso da faculdade. Infelizmente eu não ganhei nada, só a lembrança de me divertir muito escrevendo hahaah


E era um escritor que não sabia escrever.

Simplesmente, um belo dia, acordou, como sempre fazia, lavou o rosto e se olhou no espelho, contemplando as persistentes olheiras que estavam entalhadas feito mármore em seu rosto.

Era um homem relativamente jovem. Seus olhos acompanharam sua fisionomia, passando pelos seus cabelos desgrenhados, seus olhos escuros e seu nariz reto. Parou em seu queixo quadrado.

É, até que tenho um queixinho bonitinho, pensou.

Isso lhe deu motivos suficientes para acreditar que o dia seria ótimo. Afinal, não são muitas pessoas que tem o queixo charmoso, ou ao menos era isso que ele pensava. Deu um sorriso forçoso para si mesmo refletido no espelho, como que para reafirmar o pensamento mentalmente. Enxugou o rosto e foi se vestir. Abriu o guarda roupa e se arrependeu logo em seguida, pelo monte de roupas que caiu a seus pés. Pegou a primeira camiseta que estava menos amassada em sua frente.

Foi até a cafeteira, colocou água, o pó do café, ligou e esperou ansiosamente, tamborilando os dedos na bancada. Tentou assoviar, mas soou estupidamente deprimente. Realmente não estava se sentindo tão contente assim. Cruzou os braços e pensou no que faria naquele dia. Não haveria nada de novo, provavelmente. A busca por algo em sua agenda mental demorou tempo suficiente para o café preencher a pequena garrafa. E ainda assim, nenhuma ideia.

Suspirou e pegou a garrafa. Procurou sua xícara favorita, aquela que tinha desenhos de pequenos pássaros pretos que voavam sobre uma grama preta e branca, em direção a um por do sol, porém como não estava em seu armário de costume, se dirigiu até a bagunça de louças na pia e procurou até encontrá-la. Lavou rapidamente e serviu seu café. Sentou-se a mesa olhando a xícara. Olhando a fumaça quente sair do café, produzindo aquele efeito de imagem tão bonito que ele tanto gostava.

Observou a xícara até o café esfriar. E depois, sem perceber, continuou pelo menos quinze minutos ali, estático, com os pensamentos girando em espiral, tal como o vapor do café, como fazia todos os dias. Pensou sobre os pássaros, será que eles possuíam algum objetivo ao voar? Será que eles voavam com algum destino pré-definido, ou simplesmente aproveitavam a sorte de planar nos ares para fazê-lo sem pensar muito, apenas pelo prazer do ato?

Ele, por breve instantes, desejou ser um daqueles pássaros. Sorveu o café ainda pensando em tudo aquilo. Estava terrível, sem açúcar. Mas o autor se sentia desanimado demais para se levantar e pegar, de modo que tomou daquela maneira mesmo. Passou as mãos pelo rosto pesarosamente e se levantou, passando pelo calendário pregado ao lado da janela. Voltou de costas e parou de frente ao papel que denotava seus febris e escassos compromissos.

Havia um post it, de berrante tom alaranjado, fixado na data que ele demorou a reconhecer como sendo o dia seguinte. Nele estava escrito palavras que fizeram seu estômago revirar. “Entrega do tema do livro”. Ele encostou-se à bancada para não cair. Um dia? Como havia deixado aquilo acontecer?

Correu de encontro ao seu computador. Havia cabos enrolados se esgueirando para fora da mesa por todo o chão, tal como cipós na floresta tropical, fazendo-o usar toda sua agilidade e perspicácia para não se enroscar e levar ele mesmo e o pobre computador para o chão.

Sentou na cadeira, estafado pela ansiedade, e pressionou o botão “Power” do computador. A luz de LED acendeu, e ele encarou ansiosamente como se isso ajudasse o computador a se ligar mais rápido. A tela se acendeu e ele desviou o olhar rapidamente, como se estivesse acompanhando um interessantíssimo jogo de ping pong, ou talvez de tênis, entre o monitor e o gabinete. Seu computador, que era uma relíquia dos anos 2000, gemeu em protesto – e como que para testar a paciência do autor, ele demorou mais do que o de costume a ligar. O homem se pegou tamborilando os dedos novamente na mesa, dessa vez com maior velocidade.

A tela apresentou sua área de trabalho. Ele gemeu de alivio. Pegou o mouse e abriu seus documentos. Ali estava, o arquivo escrito “Sem título”. Clicou duas vezes com uma impaciência feroz e o arquivo demorou quase trinta segundos para se abrir. Isso o fez passar as mãos no rosto quase como que para arrancar os olhos, tamanha impaciência. Quando a página finalmente se abriu, ele apertou os olhos ao contemplar a página brilhante, que continha vitoriosamente em seu topo os seguintes dizeres: “E era uma vez…”. No resto da página, havia um branco de uma pureza que ao entrar na retina do homem estranhamente se transformou em terror puro. A gota de suor que escorreu em sua têmpora parecia rir de sua cara naquele momento.

Ele fechou a página. Não era possível. Ele se lembrava de ter escrito vinte ou doze páginas, no mínimo. Era algo com o número dois, tinha certeza absoluta. Talvez fosse seu computador que estava com problemas, talvez se ele atualizasse a pasta e abrisse de novo…

E abriu. E durante os trinta segundos de espera, fechou seus olhos com força. Respirou fundo. Contou até trinta. Abriu de novo para encarar o inocente “E era uma vez” ali, acenando para sua burrice. Mas, como aquilo acontecera? A resposta veio como um estalo. O autor recordou-se de estar escrevendo um conto de terror. Havia realmente duas páginas, somente duas. E ele estava discutindo com seu íntimo sobre a chatice de contos de terror e como são fáceis de serem feitos. Basta colocar um fantasma pulando na cara do protagonista e gritando “Buuu” e pronto, estrago feito. Pessoas assustadas com sucesso. Mas detestava esses clichês que, ao escrever, o encaravam e zombavam de seu talento, que, aliás, era impressivo. Mas e aquelas palavras naquela página? Um conto infantil, sério? E onde estava a genialidade que despertaria sentimentos de espanto e profunda admiração nos críticos? Mal podia acreditar. Ele devia estar fora de si quando fez aquilo. Um dia apenas. Ele conseguiria fazer isso. Só precisava entregar no máximo cinco páginas para a editora dar sinal verde para ele continuar escrevendo.

Estalou os dedos e pegou a garrafa de café, servindo mais da bebida já fria na xícara de pássaros. Os pássaros pareciam acenar pra ele, que resistiu ao impulso de perder tempo observando a xícara novamente, tomando o café quase todo de uma vez ainda sem o açúcar. Em compensação, ficou olhando a página em branco por quase três horas.

Ok, a situação estava ficando preocupante.

Respirou fundo novamente e resolveu ir lá fora, tomar um ar. Era assim que as ideias interessantes surgiam, não é? Tentou abrir a porta, mas o bocado de papeis embaixo do carpete dificultou a tarefa. Uma rápida olhada o fez empurrar o monte embolorado, que identificou brevemente como sendo contas, para longe. Quando abriu a porta, a claridade do dia quase o cegou. Se o mundo lá fora costumava ser tão claro assim ele não saberia, com as horas do dia dedicadas em ficar em casa e sair somente à noite.

Resolveu dar uma volta pelo quarteirão e buscar elementos simples para compor sua narrativa. Olhou um cachorro correndo pela calçada. História sobre um cachorro? Um cachorro falante que discutia política na TV. Ele poderia até ter bigode. Ah não, péssima ideia. Viu um menino correndo e brincando com uma imaginária espada de aço, na realidade feita de madeira. Uma história de heróis, onde eles lutavam na Era Medieval e eram fortes e musculosos. Não, isso é muito raso e fácil. Ele amava um desafio. Ou ao menos quando conseguia fazê-lo.

E então, subitamente, o autor começou a correr. Não sabia definir o motivo, talvez fosse o desespero falando mais alto. Ele desejou fugir das responsabilidades de ser adulto, ter bagunça no guarda roupa e contas sob o carpete. Correu e correu, até ficar ofegante. Isso aconteceu no fim do quarteirão. Olhou para trás e viu sua casa a quase 30 metros de distância. Arfando, quase se arrastou de volta para dentro. Iria escrever sobre os pássaros, estava decidido.

Sentou na frente do computador e começou a digitar, digitou furiosamente, conectando as frases como peças de um incrível quebra cabeça, e continuou digitando até se dar por conta que aquilo estava terrível, e segurando o botão de apagar jogou fora mais quatro horas de trabalho.

Ele ficou ainda mais desesperado. Olhou para o relógio, sentindo a pressão surda e esmagadora do prazo se esgotando esgueirando-se sobre seus ombros. Levantou-se, lavou o rosto e ao se olhar no espelho não achou seu queixo tão bonitinho assim. Tomou um banho que mal demorou cinco minutos, e praticamente correu até o guarda-roupa. Jogou todas as roupas no chão e começou a dobrá-las, procurando sua camiseta da sorte que possuía a foto de um golfinho. Passou na cozinha e lavou as louças em uma velocidade absurda, refletindo o nervosismo que o atormentava. A aquela altura, a fome também o atormentava. Esquentou coisas indefinidas que moravam em sua geladeira e mastigou impetuosamente, pensando no infortúnio de ser um terrível escritor, com um talento incrível.

Soou como um tiro. Um estalo em sua mente. Foi como se aparecesse um arco-íris em um céu nublado, como se fosse a luz no fim do túnel, como se ele fosse cego e visse a mais bela flor em sua frente, apenas esperando para ser cheirada. Tropeçou até a mesa novamente, porém, dessa vez sentou-se com a maior calma desse mundo. Agora, ele tinha absoluta certeza que daria certo. Abriu uma nova página, fechou os olhos por trinta segundos, pensando na salvação que sua ideia carregava. Ao abrir os olhos, lá estava a página: branca, imaculada, esperando que ele a preenchesse com todo o seu inenarrável talento.

Digitou a frase no topo da página, lentamente, letra por letra, apreciando o sabor da vitória:

“E era um escritor que não sabia escrever.”

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Última atualização em mai. 11, 2025 22:00 UTC
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